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sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

Lapinha foi a primeira cantora do Brasil a ir para a Europa


Ela arrancou aplausos de plateias exigentes e elogios de críticos europeus no século XIX. Mulata, Joaquina Maria da Conceição da Lapa, a Lapinha, venceu preconceitos e se tornou a primeira cantora brasileira aplaudida fora do Brasil. O pesquisador e músico Sérgio Bittencourt-Sampaio, em seu livro “Negras líricas: duas intérpretes brasileiras na música de concerto” (Sete Letras, 2008), narra o quanto a artista foi pioneira nas artes e na emancipação da mulher. “Houve outras mulheres dedicadas à música, em seu tempo e antes, mas estavam longe de conseguir tal prestígio”, diz Bittencourt-Sampaio.
[Acima, um 'retrato inventado' de Lapinha, feito pelo artista plástico Mello Menezes, já que o rosto da cantora não é conhecido]

Quando descobriu a Lapinha?
O nome da Lapinha tem aparecido esporadicamente em textos sobre música brasileira e memórias da cidade do Rio de Janeiro voltados para o final do Vice-Reinado e Período Joanino, mas sempre limitados a uns poucos parágrafos, ou, mesmo poucas linhas. Por isso, nas minhas pesquisas bibliográficas passava por esse nome, mas não me chamava a atenção. Meu interesse surgiu quando comecei a pesquisar cantoras líricas negras brasileiras do século XIX, há pouco mais de cinco anos. A primeira foi Camila da Conceição, que me despertou o interesse quando encontrei uma fotografia dela na Escola de Música da UFRJ. Os dados biográficos então existentes eram raríssimos. Resolvi, então, recompor sua história, em busca das possíveis fontes. Logo encontrei referências à carreira da Lapinha que imediatamente mereceu minha atenção, a princípio por ser de etnia negra (por isso, se enquadrava na pesquisa) e, depois, pelo seu mérito artístico. Não havia então nenhum livro publicado no Brasil sobre o assunto. Logo me aprofundei nos estudos para elaborar uma pequena biografia, não só relativa à carreira musical da cantora, mas à sua vida artística em geral e aos seus triunfos.

O que mais chamou a atenção no seu estudo?
À medida que a pesquisa progredia, foi o enorme sucesso que ela obteve no Brasil e em Portugal, em função do talento tanto como cantora quanto como atriz dramática, exaltado de maneira acentuada por pessoas que a conheceram. E também o prestígio que ela obteve junto à Família Real, na Metrópole e no Brasil. Basta você pensar que ela foi a primeira mulher a se apresentar no Teatro de S. Carlos em Lisboa (pouco após a inauguração), isso revela o valor de seus dotes artísticos. A apresentação no Porto também foi extraordinária. Tinha tanta gente querendo assistir à estreia que foi necessário fazer uma outra apresentação poucos dias depois. A isto, podemos acrescentar a atuação em solenidades como o aniversário do Príncipe Regente e o enlace matrimonial de D. Maria Teresa, a Princesa da Beira, com D. Pedro Carlos de Bourbon, em 13 de maio de 1810, no Rio de Janeiro.

Na época (final do Vice-Reinado e início da Monarquia), uma cantora lírica obter tal repercussão, se distinguindo de outras atrizes e atingindo um nível de fama ainda não conquistado por nenhuma brasileira na área lírica, até mesmo no século XIX era um fato notável e único.
Se considerarmos a condição étnica, vemos que foi a primeira mulher negra a ter imenso sucesso na arte. Houve outras dedicadas à música, em seu tempo e antes, mas estavam longe de conseguir tal prestígio.

Na sua opinião, o que fez a Lapinha encantar as plateias europeias? Qual era o seu diferencial?
Acredito que, sem dúvida, uma parte do encanto resultasse do próprio talento da Lapinha. Os elogios não foram poucos, tanto em Portugal como no Brasil, e isto justifica o tributo que recebeu nas suas apresentações. Mas, além disso, creio que havia algo particular que a distinguia dos cantores europeus. Talvez fosse um tipo exótico. Em primeiro lugar, uma brasileira cantando no grande teatro de Lisboa, inaugurado havia pouco. A presença de uma mulher da América naquele palco deve ter atraído atenção.
 Em segundo lugar, só o fato de obter autorização da Rainha D. Maria e do Príncipe Regente para tal apresentação, me parece um fato que deve ter enaltecido a cantora.

Em terceiro lugar, a etnia. Constituía um elemento exótico, num ambiente de dançarinas e cantores europeus. Uma mulata, certamente constituía uma personagem que, pela origem, se distinguia dos outros. Era praticamente inexistente a presença de mulatas em cena lírica na Europa.

Um detalhe que me parece muito significativo é o fato de o público português lhe ter dado o cognome Lapadinha “com certa ternura”, como comentou Castello Branco Chaves. Isto revela o carinho que o público demonstrou em relação à artista. Seria essa ternura o que hoje chamamos de “jeitinho brasileiro”, inerente, no caso, à etnia, e que a distinguia das atrizes europeias? Em face de todo o sucesso, do entusiasmo que provocou no meio estudantil em Coimbra, da paixão arrebatada que despertou no poeta João Evangelista de Moraes Sarmento, podemos admitir que ela era uma artista dotada de muito carisma.

Existem estudos específicos sobre o timbre da mulher negra?
Na verdade, não conheço nenhum estudo específico sobre esse tema. O chamado “som negroide” a que Wayne Koestenbaum se referiu é uma característica real, constatada muito mais por apreciação individual. Nos livros acadêmicos sobre voz, esse termo não consta na classificação tradicional das vozes, porém é um fato inegável quando nos deparamos com a audição.

Rosalyn M. Story fez algumas considerações tentando justificar a origem dessa qualidade sonora. Citou autores que se referiram à conformação da laringe e dos seios faciais, resultado da genética, mas não chegaram a grandes conclusões.

Além disso, creio que há algo que depende do psiquismo, da liberdade de criar, mais
espontânea na mulher negra que na caucasiana. E, ainda mais, muito desenvolvido na raça negra em geral (veja as danças populares, as canções, a atração pelo ritmo, a espontaneidade). Nesse ponto, lembro-me do sociólogo Roger Bastide, que afirmou que “o elemento poético africano não consiste na escolha de temas afro-brasileiros, mas na afetividade ou no espírito com os quais certos assuntos são abordados”. Veja que aqui não mais se trata do timbre, mas da interpretação.

Uma referência interessante aparece relatada pela professora e socióloga Léa Freitag: “De fato, o colorido da pele da mulata tem uma conotação sensual inacessível à branca; talvez esse colorido se estenda à voz, que não deixa de ser um chamamento ao amor”.

Essa disse tudo: etnia, cor da pele, timbre (colorido da voz) e sedução. Se você buscar na literatura brasileira, o melhor exemplo é a Vidinha de “Memórias de um sargento de milícias”, que exatamente com todos esses atributos reunidos, encantou Leonardo, o protagonista do romance.

Qual seria a causa da diferença entre o timbre de uma cantora negra e de uma cantora branca?
Em primeiro lugar, quando se fala em timbre em relação à voz, é diferente do conceito físico aplicado nos instrumentos, que diz respeito a propriedades físicas do som relacionada com os harmônicos, envolvendo a construção e o material de cada instrumento. No caso da voz, depende de muitos fatores altamente variáveis: anatômicos, sociais, psicológicos, educacionais etc. Certamente esse conjunto faz a diferença entre a voz de uma cantora negra e de uma branca.  Por isso, alguns preferem trocar o nome timbre vocal por qualidade vocal.
Também não há uniformidade de opiniões quanto à influência desses fatores na produção de um determinado tipo de qualidade vocal. Médicos, físicos, musicólogos, antropólogos, linguistas, cada um tem uma opinião. Também o termo “timbre negroide” ou “som negroide” (como aparece em Koestenbaum) não figura nas classificações tradicionais de vozes, mas é uma característica reconhecida por cantores, professores de música e público em geral. Atualmente, a etnomusicologia busca explicar esse som, mas ainda sem uma comprovação exata, de cunho científico.
Onde é possível encontrar documentos sobre a cantora?
No Brasil, os documentos são raríssimos. Existe uma pequena referência a ela num manuscrito existente no Arquivo Histórico do Museu Nacional redigido por Manoel Joaquim de Meneses (cerca de 1850) sobre o teatro lírico no final do Vice-Reinado e chegada da Corte ao Brasil. As principais fontes primárias se encontram na Torre do Tombo, em Lisboa. Vale lembrar as notícias publicadas no periódico “A Gazeta de Lisboa” (1795-1796), além de poucos programas de récitas.

Alguns poetas chegaram a escrever para a Lapinha. Qual era o conteúdo desses escritos?
O único poeta de que conheço duas poesias originais dedicadas à Lapinha (“Ode Pindárica” e “Canção”) foi o português João Evangelista de Moraes Sarmento. A brasileira despertou nele uma paixão avassaladora, que se externou em poemas.

Pode citar algum trecho?
Em Ode Pindárica, a exaltação da Lapinha atingiu o máximo: “A lira é, que ousado, belíssima Lapinha”, “Adoremos Lapinha em seus altares”, “um volver d’olhos traz milhões de palmas”, e, ele numa situação de extrema de paixão, suplica à amada: “Lapinha acode, restitui-me a vida”. Admite-se que outro poeta português, Manuel Barbosa du Bocage, tenha preparado para ela uma tradução do drama Ericia do francês Dubois-Fontenelle (Fontanelle).

Onde estão esses poemas?
Os poemas de Sarmento foram publicados na antologia do próprio poeta editada em Lisboa. 


Leia mais sobre Lapinha na edição impressa da Revista de História da Biblioteca Nacional [nº 64], que traz um artigo sobre Joaquina Maria da Conceição Lapa, a Lapinha, escrito pelo professor Paulo Castagna, da Universidade Estadual Paulista.

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