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quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Mais profetas no Calçadão

Estátua viva, em cima de um banco de praça no Calçadão da Cardoso, pés negros descalços, ele empunha dois pedaços de papel envoltos plásticos rígido transparente como uma espécie de resumo de suas estranhas pregações, precariamente escritas a lápis tinta. Moisés maltrapilho e orgulhoso de sua loucura, não desprega o olho de seu único bem, uma bolsa de pano cinza, descolorida pelo sol e quase toda remendada. Desconhece ser hoje 10 de setembro, dia tenso, véspera de coisa ruim para muitos, depois do fim das duas torres norte-americanas.

Paro e, em sua frente, abro minha pequena pasta. De lá, retiro duas folhas de papel jornal para copiar os mandamentos do profeta andarilho que pousou como uma ave na sedentária bancada dos frequentadores do Calçadão. Apoio os papéis em cima da minha agenda e ao sacar a caneta bic já me vejo cercado por alguns velhinhos curiosos que perguntam o que vou fazer com aquelas anotações. Deve ser pra jornal, pensou alto um deles.



Apenas quando o novo profeta constata a formação de uma pequena platéia é que o gelo é quebrado. Pergunto seu nome. Diz que em português é José Lourenço, mas que no original do documento é em francês já que seus pais são marroquinos. Só anda a pé, não tem nem usa sapato pra não dar caminho ao cão. Veio de João Pessoa andando, quatro dias de caminhada. Foi dono de bar, trabalhou em firma importante em São Paulo, mas largou tudo para sair pelo mundo. Aos 55 anos, não tem um livro em sua bolsa rasgada, mas sabe praticamente toda a Bíblia decorada. E só quando é preciso fala francês ou inglês.

- O pessoal fala que sou andarilho, que sou um profeta. Mas só venho pregando o evangelho. Tenho casa em Poço de Caldas, de onde saí.

Peço que se sente para a gente conversar. Altivo, prefere falar pendurado num banco de praça, como um pombo. Insisto, ele chateado, pergunta se isso é uma entrevista pra jornal. Recolhe os mandamentos, senta ao meu lado não mais como um Moisés estático. Já sinto o ser humano perto de mim, seus dramasinconfessáveis, sua loucura e principalmente sua coragem de sair pelo mundo. Solidários, alguns velhinhos da praça já o tomam como irmão José, profeta andarilho sabedor das leis divinas. Outro amassa uma cédula e lhe dá uma pequena oferta de dois Reais pra ajudar no almoço que se aproxima. Não toma café, não come carne vermelha, não toma água gelada muito menos sorvete. Diz que vai demorar pouco em Campina Grande, uns quatro dias. Depois vai andando por aí, talvez Natal, Serra Talhada ou Garanhuns, terra de Lula. Nada é certo em se tratando de um andarilho.

- Passei uma boa nessa sua terra irmão. Em Campina Grande, naquela praça de bancos vermelhos, uns dois rapazes drogados e armados de faca disseram assim: tu não pede mas essa bolsa deve ter dinheiro seu mendigo. Foi um livramento de Deus eu não levar uma facada, pois policiais passaram na hora e espantaram eles.

Assustado, entre os leões e cordeiros, prossegue sua silenciosa pregação. Distancia-se, sobe novamente no altar improvisado, o banco de cimento doCalçadão. Quem sabe, talvez amanhã seja um sábado de sol, 11 de setembro, aqui em Campina Grande e também em Nova Iorque.

Carlos Azevedo
(jornalista e professor da UEPB)

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