Pesquisas comCUCA

quinta-feira, 3 de maio de 2012

Vamos caminhar nas águas do Açude Velho? (2)

GUIA MANUAL
PARA CEGOS DA FÉ (primeira parte)

Texto-Manifesto do Coletivo Midias para intervenção urbana:
"Com Roldão Mangueira, nem Pedro afunda",
do projeto A Cidade em Estado de Arte.

A CIDADE COMO UM DISCURSO...

"Alô Alô minha Campina Grande / Quem te viu e quem te vê / Não te conhece mais / Campina grande tá bonita, tá mudada / Muito bem organizada, cheia de cartaz"
O termo cartaz que encerra o refrão da música-homenagem de Severino Ramos à Campina Grande, vem demarcar que a cidade está importante, goza de status, é respeitada; enfim, que não é mais uma cidadezinha... Aliás, este foi e tem sido seu o mote-símbolo principal, como se fugisse da morte, tudo em Campina deve ser grande.
O aquecimento global e imobiliário não é luxo apenas dos grandes centos ou das capitais, faz-se presente aqui também. Há inclusive, uma feira imobiliária tida como a maior do segmento no estado, um megaevento exibindo as inúmeras opções, sobretudo de apartamentos...Aliás, quem vem à Campina... Percebe mesmo que a cidade cresce verticalmente. Pronto. Achamos a ponte para entrar no assunto da ponte.

Se há uma imagem, ou melhor, um signo que nos mostre o que é a modernidade, certamente a cidade verticalizada é de longe, o mais apropriado. Grandes pensadores da atualidade, como Michael De Certeau, estuda o espaço da cidade e sua crescente verticalização como um discurso, um discurso que articula e executa estratégias de poder.
Neste emaranhado de tijolos opera-se uma separação, de um lado os habitantes e, de outro, os transeuntes. Em "A invenção do Cotidiano", De Certeau conclui que "tudo se passa como se uma espécie de cegueira caracterizasse as práticas organizadoras da cidade habitada. As redes dessas escrituras avançando e entrecruzando-se compõem uma história múltipla, sem autor nem espectador, formada em fragmentos de trajetórias e em alterações de espaços: com relação às representações, ela permanece cotidianamente, indefinidamente, outra ".
É curioso que a nossa cidade não estranhe o crescimento vertical. Ao contrário, vê-lo sempre como sinônimo de avanço, emprego, boa moradia. Mas, poderá estranhar a precária ponte que se instalará provisória e inócua, cruzando a lama escondida em seu principal cartão postal.
A resposta para esta estranheza ou não-estranheza é uma só: no caso da verticalização, originalmente posta como um plano moderno de urbanização, temos a construção dos espaços, enquanto que na ponte-instalação, o que se dá é o fenômeno do lugar, muito bem conhecido pelos mendigos, prostitutas e maloqueiros que acham frestas nos espaços legitimados e põem-se numa
relação de lugar ( nas marquises, descampados, viadutos etc...) nos espaços da cidade.
Definidos como legítimos, os espaços contornam a cidade enquanto os lugares são incursões mais ou menos desautorizadas e que tentam reconfigurar os espaços, isto é, a malha que tece sua estrutura de relação. É óbvio que estes espaços da cidade não existem para estes "sem-lugares" ficarem estáticos. Afinal, eles não estão parados, ao contrário, realizam um intenso e diário movimento. E, já que não se pode visivelmente apagar, por definitivo, estes espectros de gente, nós, por meio das instituições, circundamos os espaços com muita nitidez nos recortes de suas margens, Enquanto eles (os outros, os transeuntes, trabalhadores, desempregados) perambulam em busca de lugares.

UMA ARTE NÃO-ARTE
Em sua utopia, este projeto fabrica uma possibilidade de reconversão intercultural entre turistas e mendigos, criando uma trilha com as migalhas de suas cartografias pela cidade. Um caminho aberto pela memória e seus registros, refundindo seus arquétipos mais triviais, provocando a inauguração de novos agenciamentos de suas práticas isoladas, solitárias e autodestrutivas. O chamamento que esta estranha arte faz é o da superação, invocando não a contemplação mórbida, mas em ato, num jogo de ação onde a vivência autodirigida abre-se às mais íntimas vicissitudes dos participantes.
Diante disto, propõe-se a arte da intervenção para recuperar ou mesmo inaugurar um locum no meio dos espaços vigiados que tece a cidade. Assim como os transeuntes da cidade panótipa, a arte da intervenção, utiliza-se de táticas para escavar modos de existir em meio ao espaços.
De fato, não será um Caminho de Compostela, onde o fiel é guiado por uma máquina de fé milenar que traciona o sofrimento, a privação, a devoção a uma iluminação final e redentora para que o corpo purifique-se pelo sofrimento; ética central do medieval religioso europeu que nos se impregnou como uma tatuagem mental.
A superação aqui é mais prática; de um lado, contra o odor e a inércia paisagística deste safári diário (o açude velho). Visível como Édem apenas nas lentes das publicidades, mas visceralmente sentido pelas narinas do corredores amadores. Por outro lado, é também contra o apagamento que intenta esconder o passado preconceituoso contra a fé alheia, encerrando para os desvãos do ostracismo os fatos "licenciosos", impuros. Numa inquisição pré-nazista da autoridade religiosa e midiaticamente comandada pelos donos da voz da opinião pública dos idos de 1980, como fazem, ainda hoje o "jornalismo verdade", tão irresponsável quanto malicioso.
Este projeto, como fruto da Arte Conceitual, que se destaca pelo aspecto determinante da ideia, traz para a pauta de arte da cidade, 1) o trânsito dos meios; 2) a precariedade dos materiais utilizados e; 3) a atitude crítica manifestada frente às instituições. Em seu compositório, é uma Ação Cultural articulada de elementos transversais (educação ambiental, história local e vivência artística) para os concidadãos campinense.
Sua premissa evoca o acesso democrático à cultura. Pois democracia "é pluralidade cultural, polissemia interpretativa visando a diminuição do analfabetismo visual". Neste sentido, nos ajuntamos ao pensamento de Canclini ao afirmar que "esperar que os museus existam para aplainar a carência do cidadão é no mínimo uma negação à realidade excludente de nossa sociedade na sua oferta de conscientização cultural" das populações de cidadão de papel que existem nos arquivos burocratizados do Estado. Esta proposta é, antes de tudo, um encontro [artístico] do cidadão com sua história, com sua cidade e, sobretudo com sua cidadania.
Em resumo, ao se reclamar uma filiação para esta Ação, neste moldes, pode-se gerir que é uma Ação Cultural modelada pela Arte da Invenção ou, como mais habitualmente conhecida, de "Intervenção Urbana", nascida da performance, do happening e do teatro pós-dramático. Cremos que são termos bem comuns numa cidade tão moderna - e artística - quanto Campina Grande, não?
Não? Não! Que horror. Se bem que, nem de nossa memória, nem quando digitado no Google: //Arte contemporânea em Campina Grande//, não encontramos nada do gênero, senão um simpósio, do tipo kitsch , de divulgação pelo MinC.
Mas aí, ficamos a meio caminho! Como uma cidade moderna como Campina Grande desconhece a realização de um tipo de arte tão comum à sua condição moderna, de quem vive e reflete a modernidade? Não haveria aqui um descompasso que vai de encontro ao tal CARTAZ atribuído na música de Severino à cidade?
A não ser que se trate do Severino ou da música errada. Seriam então, o Severino de Cabral? - não confundir com o Teatro Severino Cabral, em ruínas mesmo após uma megareparação -, A lama de Josué de Castro e a Cidade, cantada por Chico Science? já que "O de cima cresce e o de baixo desce". Sim, crescem os prédios, já sabemos. Mas enquanto a arte? desce? Pelo menos mortificase nos carrinhos de som ambulantes, no calendário junino de uma festividade cada vez mais para ar-condicionados...Será que esta arte que propomos não vai dá com os burros n´água?
Mas ainda estamos do outro lado, quer dizer, falta a travessia. Que tipo de motivação, fé ou necessidade poderá nos fazer cruzar esta ponte radioativa?

Nenhum comentário:

Postar um comentário