GUIA MANUAL
PARA CEGOS DA FÉ (primeira parte)
PARA CEGOS DA FÉ (primeira parte)
Texto-Manifesto do Coletivo Midias para intervenção urbana:
"Com Roldão Mangueira, nem Pedro afunda",
do projeto A Cidade em Estado de Arte.
"Com Roldão Mangueira, nem Pedro afunda",
do projeto A Cidade em Estado de Arte.
A CIDADE COMO UM DISCURSO...
"Alô
Alô minha Campina Grande / Quem te viu e quem te vê / Não te conhece
mais / Campina grande tá bonita, tá mudada / Muito bem organizada, cheia
de cartaz"
O
termo cartaz que encerra o refrão da música-homenagem de Severino Ramos
à Campina Grande, vem demarcar que a cidade está importante, goza de
status, é respeitada; enfim, que não é mais uma cidadezinha... Aliás,
este foi e tem sido seu o mote-símbolo principal, como se fugisse da
morte, tudo em Campina deve ser grande.
O
aquecimento global e imobiliário não é luxo apenas dos grandes centos
ou das capitais, faz-se presente aqui também. Há inclusive, uma feira
imobiliária tida como a maior do segmento no estado, um megaevento
exibindo as inúmeras opções, sobretudo de apartamentos...Aliás, quem vem
à Campina... Percebe mesmo que a cidade cresce verticalmente. Pronto.
Achamos a ponte para entrar no assunto da ponte.
Se
há uma imagem, ou melhor, um signo que nos mostre o que é a
modernidade, certamente a cidade verticalizada é de longe, o mais
apropriado. Grandes pensadores da atualidade, como Michael De Certeau,
estuda o espaço da cidade e sua crescente verticalização como um
discurso, um discurso que articula e executa estratégias de poder.
Neste
emaranhado de tijolos opera-se uma separação, de um lado os habitantes
e, de outro, os transeuntes. Em "A invenção do Cotidiano", De Certeau
conclui que "tudo se passa como se uma espécie de cegueira
caracterizasse as práticas organizadoras da cidade habitada. As redes
dessas escrituras avançando e entrecruzando-se compõem uma história
múltipla, sem autor nem espectador, formada em fragmentos de trajetórias
e em alterações de espaços: com relação às representações, ela
permanece cotidianamente, indefinidamente, outra ".
É
curioso que a nossa cidade não estranhe o crescimento vertical. Ao
contrário, vê-lo sempre como sinônimo de avanço, emprego, boa moradia.
Mas, poderá estranhar a precária ponte que se instalará provisória e
inócua, cruzando a lama escondida em seu principal cartão postal.
A
resposta para esta estranheza ou não-estranheza é uma só: no caso da
verticalização, originalmente posta como um plano moderno de
urbanização, temos a construção dos espaços, enquanto que na
ponte-instalação, o que se dá é o fenômeno do lugar, muito bem conhecido
pelos mendigos, prostitutas e maloqueiros que acham frestas nos espaços
legitimados e põem-se numa
relação de lugar ( nas marquises, descampados, viadutos etc...) nos espaços da cidade.
Definidos
como legítimos, os espaços contornam a cidade enquanto os lugares são
incursões mais ou menos desautorizadas e que tentam reconfigurar os
espaços, isto é, a malha que tece sua estrutura de relação. É óbvio que
estes espaços da cidade não existem para estes "sem-lugares" ficarem
estáticos. Afinal, eles não estão parados, ao contrário, realizam um
intenso e diário movimento. E, já que não se pode visivelmente apagar,
por definitivo, estes espectros de gente, nós, por meio das
instituições, circundamos os espaços com muita nitidez nos recortes de
suas margens, Enquanto eles (os outros, os transeuntes, trabalhadores,
desempregados) perambulam em busca de lugares.
UMA ARTE NÃO-ARTE
Em
sua utopia, este projeto fabrica uma possibilidade de reconversão
intercultural entre turistas e mendigos, criando uma trilha com as
migalhas de suas cartografias pela cidade. Um caminho aberto pela
memória e seus registros, refundindo seus arquétipos mais triviais,
provocando a inauguração de novos agenciamentos de suas práticas
isoladas, solitárias e autodestrutivas. O chamamento que esta estranha
arte faz é o da superação, invocando não a contemplação mórbida, mas em
ato, num jogo de ação onde a vivência autodirigida abre-se às mais
íntimas vicissitudes dos participantes.
Diante
disto, propõe-se a arte da intervenção para recuperar ou mesmo
inaugurar um locum no meio dos espaços vigiados que tece a cidade. Assim
como os transeuntes da cidade panótipa, a arte da intervenção,
utiliza-se de táticas para escavar modos de existir em meio ao espaços.
De
fato, não será um Caminho de Compostela, onde o fiel é guiado por uma
máquina de fé milenar que traciona o sofrimento, a privação, a devoção a
uma iluminação final e redentora para que o corpo purifique-se pelo
sofrimento; ética central do medieval religioso europeu que nos se
impregnou como uma tatuagem mental.
A
superação aqui é mais prática; de um lado, contra o odor e a inércia
paisagística deste safári diário (o açude velho). Visível como Édem
apenas nas lentes das publicidades, mas visceralmente sentido pelas
narinas do corredores amadores. Por outro lado, é também contra o
apagamento que intenta esconder o passado preconceituoso contra a fé
alheia, encerrando para os desvãos do ostracismo os fatos "licenciosos",
impuros. Numa inquisição pré-nazista da autoridade religiosa e
midiaticamente comandada pelos donos da voz da opinião pública dos idos
de 1980, como fazem, ainda hoje o "jornalismo verdade", tão
irresponsável quanto malicioso.
Este
projeto, como fruto da Arte Conceitual, que se destaca pelo aspecto
determinante da ideia, traz para a pauta de arte da cidade, 1) o
trânsito dos meios; 2) a precariedade dos materiais utilizados e; 3) a
atitude crítica manifestada frente às instituições. Em seu compositório,
é uma Ação Cultural articulada de elementos transversais (educação
ambiental, história local e vivência artística) para os concidadãos
campinense.
Sua
premissa evoca o acesso democrático à cultura. Pois democracia "é
pluralidade cultural, polissemia interpretativa visando a diminuição do
analfabetismo visual". Neste sentido, nos ajuntamos ao pensamento de
Canclini ao afirmar que "esperar que os museus existam para aplainar a
carência do cidadão é no mínimo uma negação à realidade excludente de
nossa sociedade na sua oferta de conscientização cultural" das
populações de cidadão de papel que existem nos arquivos burocratizados
do Estado. Esta proposta é, antes de tudo, um encontro [artístico] do
cidadão com sua história, com sua cidade e, sobretudo com sua cidadania.
Em
resumo, ao se reclamar uma filiação para esta Ação, neste moldes,
pode-se gerir que é uma Ação Cultural modelada pela Arte da Invenção ou,
como mais habitualmente conhecida, de "Intervenção Urbana", nascida da
performance, do happening e do teatro pós-dramático. Cremos que são
termos bem comuns numa cidade tão moderna - e artística - quanto Campina
Grande, não?
Não?
Não! Que horror. Se bem que, nem de nossa memória, nem quando digitado
no Google: //Arte contemporânea em Campina Grande//, não encontramos
nada do gênero, senão um simpósio, do tipo kitsch , de divulgação pelo
MinC.
Mas
aí, ficamos a meio caminho! Como uma cidade moderna como Campina Grande
desconhece a realização de um tipo de arte tão comum à sua condição
moderna, de quem vive e reflete a modernidade? Não haveria aqui um
descompasso que vai de encontro ao tal CARTAZ atribuído na música de
Severino à cidade?
A
não ser que se trate do Severino ou da música errada. Seriam então, o
Severino de Cabral? - não confundir com o Teatro Severino Cabral, em
ruínas mesmo após uma megareparação -, A lama de Josué de Castro e a
Cidade, cantada por Chico Science? já que "O de cima cresce e o de baixo
desce". Sim, crescem os prédios, já sabemos. Mas enquanto a arte?
desce? Pelo menos mortificase nos carrinhos de som ambulantes, no
calendário junino de uma festividade cada vez mais para
ar-condicionados...Será que esta arte que propomos não vai dá com os
burros n´água?
Mas
ainda estamos do outro lado, quer dizer, falta a travessia. Que tipo de
motivação, fé ou necessidade poderá nos fazer cruzar esta ponte
radioativa?
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